13 de nov. de 2017

PISTACHE DRUM AND BASS VIRTUAL DJ SET






Toda vez que eu penso na minha vó cada vez mais percebo como ela era uma pessoa genial.
Ela não era de falar muito e se comunicava mais por gestos e muitos desses gestos eram tão sutis, tão curtos, que só muitos anos depois dela ter morrido eu comecei a entender.
Mas quando falava, mudava o ar ao redor dela.

Ia do silêncio à frases soltas sem avisar, algumas ironias (umas amargas, outras doces), mas sempre calava todos.
Um dia ela disse, sem motivo nem contexto: "vivi demais pra uma vida só". 
E como viveu.

Conversava em português, falava sozinha e brigava em alemão, se assustava e xingava em italiano, assim era ela.
Entre um xingão e outro me apelidou de Golem (o melhor apelido que qualquer ser humano pode ter na vida), e me passou a me chamar assim resumidamente quando tava feliz ou irritada comigo.
Dicotomia amorosa.

Quando eu tinha dez anos de idade eu briguei com o vendedor de uma loja porque a bicicleta na vitrine estava empoeirada.
O vendedor contou pra minha vó (interior né, todo mundo sabe quem é a vó dos outros) e ela foi lá e comprou a bicicleta pra mim.
E limpou todo o pó antes de me dar.

Sem jeito pra essas coisas, deixou a bicicleta no porão encostada na lenha empilhada, eu achei e fui perguntar de quem era.
Ela respondeu "é tua, ninguém anda de bicicleta aqui".


"Eu te-nhô, você não te-nhê!!"

Ela se arrependeu, eu saía pra pedalar e só aparecia pra comer e dormir, e olhe lá.
Me deu um videogame na tentativa de me fazer ficar dentro de casa.
Levei o videogame pra um amigo meu e voltei com outra bicicleta igualzinha a minha, mas vermelha.
Agora eu tinha uma azul e uma vermelha e só voltava pra casa pra trocar de bicicleta, comer o pão dela e pra dormir.


"Eu tenho du-as, você ne-nhuma!!"

Só fui ficar um pouco mais em casa, muito entre aspas, quando descobri o rock and roll.
E ela se acostumou com isso também.
Aprendeu a gostar inclusive. Fazia cara que não mas né, os pés batendo no ritmo entregavam.

A dona Ernestina gostava de Jethro Tull (a banda da flautinha), Joy Division (a banda do fanho que canta bem) e Dead Kennedys (a do cantor com voz do Pato Donald).
Nunca vou entender como ela, sem nunca ter falado inglês na vida, sabia que o Ian Curtis era fanho.

Aliás pega essa, uma das músicas favoritas dela parecia ser "Time to Melt" do LARD, projeto do Ministry com o Jello Biafra cantando. Definitivamente ela gostava de uma musica sinistra.


"A nossa próxima música é sobre a vó do Luiz, Ernestina Uber Alles!"

Mesmo assim ela tinha limites: odiava Iron Maiden, Slayer e Carcass por motivos óbvios.
Tinha medo do Deicide por motivos mais óbvios ainda.
Alías um dos melhores conselhos que ela me deu na vida foi: "Você vai ficar papudo se ficar imitando esses Glebento aí".


"Oi vó, esse é o Glen Benton."

Sim, eu expliquei quem era o Glen Benton pra ela.
Quando mostrei um vídeo do Pantera ela se limitou a perguntar: "Esse Pantera aí não tem amigo né?"


"A vó falou pra você não ir mais lá em casa."

Aí eu descobri o Reggae.
Só o Reggae, juro, a maconha só fui descobrir depois de velho.

Mostrei a capa do disco do Peter Tosh ela perguntou se ele era brasileiro.
Duas semanas depois eu já pegava ela cantando o "eia, eia" que vem depois de "Legalize it".
Como Peter Tosh não tinha flauta, não era fanho, não tinha voz de Pato Donald e não urrava como o Glen Benton, quando minha vó percebia que eu iria colocar alguma música pra ouvir ela pedia sem pedir cantando sem cantar algo como "oummbai, oummbaii" quando eu passava pela cozinha.

Era "them want I, them want I", pelo jeito da faixa favorita dela.
E lá iamos nós ouvir reggae enquanto eu montava meus skates e ela tomava chimarrão.
Queria ter fumando maconha com ela, seria épico.
Quintal pra plantar não faltava.


"Larga meus pé de couve guri!"

E por falar nisso nessa época eu comecei a fugir pra Curitiba pra andar de skate.
Quando eu reaparecia em casa, ela me xingava em todas as línguas que conhecia de uma vez só.

Quando me perguntaram porque eu ia tanto pra Curitba eu podia ter respondido "lá tem pista de skate".
Mas não, caipira como eu era, disse apenas "Curitiba tem hamburguer e mostarda amarela".

Ela não sabia o que era hamburguer então começou a achatar carne moída e fritar e nunca mais faltou mostarda amarela na geladeira. Quantos "eu te amo" não ditos cabiam nos gestos mudos da minha vó? Nunca saberia contar.

Quando eu passei no vestibular e disse que não queria morar em Curitiba mas em Florianópolis ela se tocou que eu queria ir pra longe. E demoraria cada vez mais pra retornar pra debaixo da asa dela.

Quando me despedi ela estava sentada do lado do fogão como sempre e me deu o mesmo beijo apressado e dois tapinhas de mão que eram sempre mais um empurrão que um abraço.

Em dezoito anos convivendo com ela eu só lembro de ver minha vó chorar três vezes: quando minha mãe morreu, quando meu cachorro morreu (o Pluto, esse me entendia) e a primeira vez que voltei pra Rio Negro quando já estava morando em Florianópolis. Aí ela mesma morreu seis meses depois. 

Tadinha, merecia uma estátua em praça pública e acabou ganhando uma homenagem póstuma no blog falido do neto.

Eu venho de família pobre e odiava manteiga porque pra mim manteiga representava pobreza e margarina representava uma família que tinha dinheiro. Na casa dos meus amigos sempre tinha margarina, na minha só manteiga.

Na televisão só aparecia propaganda de margarina, com famílias ricas e felizes.
Quando então passei a morar sozinho só entrava margarina na minha casa.

Mas em um dia já bem adulto eu vi uma embalagem de manteiga com uma imagem de uma vaca sorridente (pois é) e comprei sem pensar. Na hora do café passei a tal vaca sorridente no pão e na primeira mordida uma vida inteira se passou pela minha cabeça.

Tinha gosto de infância, de brincar com cachorro e do cheiro de pão da minha vó.

Tinha sensação de joelho ralado, banho tomado, Nescau quente e desenho animado. 

Comi todos os pães que havia comprado e acabei com a manteiga antes de levantar da mesa. Aliás não levantei da mesa, depois de seis pães e 200 gramas de manteiga e meio litro de Nescau com leite só me restou continuar revivendo a imagem de mim mesmo criança, com o bucho cheio e enjoado por não saber ainda o limite entre fome e gula. 

A partir de então viciei em manteiga, no outro dia comprei duas vacas sorridentes pra garantir e nunca mais comprei ou comi margarina na vida e pelo jeito já sei de que eu vou morrer. 
Mas morrerei com o sorriso de uma criança gordinha feliz.

Talvez eu tenha de fato um coração de manteiga.

Tempos depois, um dia no supermercado eu vi um saquinho de pistache e comprei pra ver se era bom.
E quando eu tava comendo me passou pela cabeça: será que minha vó conheceu pistache quando tava viva? Acho que não.

Mas Drum and Bass ela conheceu, foi a últuma tortura musical que eu mostrei pra ela.
Ignorou completamente, velha idiota.

Decerto porque ela não encontrou forma de bater os pés no chão pra acompanhar.
Ou talvez porque já tinha vivido demais, uma verdadeira Junglist.

Eu precisaria de um livro, de mil páginas, pra contar a vida tristemente surreal que ela levou.
A adaptação para o cinema ganharia um Oscar de certeza.
A atriz principal teria de ser uma mistura Meryl Streep com Dercy Gonçalves.
Saudades.

Precisaria de outro livro pra explicar porque Drum and Bass é tão importante pra mim.
É parte da minha adolescência, vida adulta e será da terceira idade.
É vivo, é puro, é verdadeiro.
É um universo, com todos os planetas, estrelas e luas.

Um buraco negro com comportamento de Big Bang: absorve o Hip Hop, o Rap, o Jazz, o Funk, o Soul, o Rock, o Heavy Metal, a MPB, a House Music, o Techno, o Reggae, o Dub e devolve tudo na sua cara sem dó.

Na verdade não sei explicar, só sei dizer que é a música mais simples/complexa, doce/amarga, leve/pesada, sutil/bruta que existe. 

É tudo.
Quem conhece sabe.
E Drum and Bass me deixa feliz, como duas toneladas de pistache.

O set tem algumas das músicas que eu mais amo no estilo, a maioria da última geração de grandes produtores, tem pelo menos dois clássicos eternos e três vozes que embalaram muito a minha vida: Lindy Layton, Lauryn Hill e Jaheim. 


Drum and Bass 
Quantidade100 gramas
Água (%)4
Calorias589,29
Proteína (g)21,43
Gordura (g)50
Ácido Graxo Saturado (g)6,07
Ácido Graxo Monoinsaturado (g)33,21
Ácido Graxo Poliinsaturado (g)7,5
Colesterol (mg)0
Carboidrato (g)25
Cálcio (mg)135,71
Fósforo (mg)510,71
Ferro (mg)6,79
Potássio (mg)1107,14
Sódio (mg)7,14
Vitamina A (UI)250
Vitamina A (Retinol Equivalente)25
Tiamina (mg)0,82
Riboflavina (mg)0,18
Niacina (mg)1,07




Notion - Even Out 
>>> Beats International - Just Be Good To Me (Acapella)
Mark System - Waiting for a Meaningful Title
Calibre - Go Back to Go Forward
Craggz & Paralell - Turn the Page
Electrosoul System & Sunchase - Alluvion
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>>> Fugees - Ready or Not (Acapella)
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